quarta-feira, 3 de junho de 2009

Um pensamento:

Aqui em baixo tudo é sem importância. Suspeitava disso há muito tempo, mas adquiri de súbito a certeza plena e completa, senti bruscamente que me seria indiferente que o mundo existisse ou que nada houvesse em parte alguma. Comecei a perceber e a sentir que, no fundo, nada mais existia para mim. Percebi nesse momento que nada existia anteriormente, ou antes, que nunca haveria nada. Parei então de me irritar com os homens e acabei quase não os notando mais.

- Dostoiévski

Esse pensamento foi "sugado" do blog amigo: Viés Planetário do meu amigo PJ. Visitem!

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Baiano na Reforma Ortográfica

Como alguém consegue pronunciar RUMÁLADISGRAÇA ???
O baiano consegue!
Agora vocêsvão entender o que nós dizemos!
BAIANÊS
TRADUÇÃO
Colé, meu bródi!
Olá, amigo.
Colé, miséra!
Olá, amigo.
Colé, meu peixe!
Olá, amigo.
Colé, men!
Olá, amigo.
Diga aê, disgraça!
Olá, amigo.
Digái, negão!
Olá, amigo. (independente da cor do amigo)
E aí, viado!
Olá, amigo. (independente da opção sexual do amigo)
E aê, meu rei?
Olá amigo.
Ô, véi!
Olá amigo.
Diga, mô pai!
Oi para você também, amigo!
Êa!
Olá, amigo.
Colé de mêrmo?
Como vai você?
É niuma, misere.
Sem problemas, amigo.
Relaxe mô fiu.
Sem problemas, amigo.
Cê tá ligado qui cê é minha corrente, né vei?
Você sabe que é meu bom amigo, não é?
Vó pu regui, negão?
Vamos para a festa, amigo?
Aí cê me quebra, né bacana.
Aí você me prejudica, não é meu amigo?
Aooonde!
Não mesmo!
Vô quexá aquela pirigueti.
Vou paquerar aquela garota.
Vô cumê água.
Vou beber (álcool).
Colé de mermo?
O que é que você quer mesmo? (Caso notável de compactação!)
Eu tô ligado que cê tá ligado na de colé de merma.
Estou ciente do seu conhecimento a respeito do assunto..
O brother tirou uma onda da porra.
O cara se achou.
Tá me tirando de otário é?
Está me fazendo de bobo?
Tá me comediando é?
Está me fazendo de bobo?
Se plante!
Fique na sua.
Se bote aí, vá!
Chamada ao combate físico.
Eu me saí logo.
Eu evitei a situação.
Shhh... Ai, mainhaaa.
Até hoje não se sabe a tradução. Sabe-se apenas que nas músicas de pagode, o vocalista está excitado com sua respectiva amante.
Ôxe!
Todo baiano usa essa expressão para tudo, mas um forasteiro nunca acerta quando usa.
Lá ele! ou Lá nele!
Eu não, sai fora, ou qualquer outra situação da qual a pessoa queira se livrar ou passar para outro.
Lasquei em banda!
Meteu sem dó nem pena.
Biriba nela mô pai.
Manda ver! (no sentido sexual da coisa)
Ó paí ó!
Olhe para aí, olhe!
Essa expressão foi utilizada pela primeira vez pelo capitão português Manoel da Padaria à frente da Nau Bolseta, que por infortúnio (leia-se burrice) perdeu-se da frota portuguesa no caminho para as Índias e veio parar na Bahia; desde então foi resgatada pelo povo baiano, assíduo leitor de Camões, já que se trata de um texto apócrifo dos Lusíadas, que nem os portugueses sabiam (nenhum jamais concluiu a leitura do clássico). É muito usada por aqui, tanto que virou filme, peça teatral, música, marca de refrigerante, água de coco, barzinho, cerveja, igreja....
Num tô comeno reggae!
Não estar acreditando ou dando muita importância.
Num tô comeno reggae de (fulano)!
Não estar com medo de provocação/ameaça de (fulano)
Tome na seqüência misere.
Tomar o troco de algo ruim que você fez.
Eu quero prova e R$ 1,00 de Big-Big!
Não acreditar. O Big-Big é um chiclete muito valorizado por pessoas de todas as classes.
Sai do chão!
Frase típica e predileta das bandas de axé. O intuito da mesma é de que indivíduo se agite e curta o som tocado em questão.
Rumálaporra!
Agir violentamente contra alguém ou algo.
Rumáladisgraça!
Agir violentamente contra alguém ou algo.
Picá a porra!
Agir violentamente contra alguém ou algo.
Ei, ó o auê aí ô!
Tida como única frase universal a utilizar apenas vogais e ter sentido completo, significa parem de baderna.
Vó batê o baba?
Chamar os amigos para uma partida de futebol.
Vó pu reggae?
Chamar os amigos para a balada.
Salvador é também conhecida por ser uma cidade cujo dialeto deu um lar aos mais diversos impropérios do cancioneiro popular local.
Possivelmente você um dia já foi convidado a visitar a Casa da Porra, a Casa do Caralho, a Casa da Desgraça!
Lá também existe a Casa de Noca que ninguém sabe onde fica, mas sabe-se que lá sempre o couro come..

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Conto de um pássaro

Um belo dia sai de casa pela manhã, não sei ao certo o horário, como de costume haviam vários pássaros nas árvores e nos fios dos postes, mas havia um pássaro desses ,que neste dia, me chamou mais atenção que os demais, um pássaro que eu sabia que era diferente, mas ao mesmo tempo parecia-me tão banal quanto os outros que ali também cantavam, mas o canto desse pássaro estava diferente, tão triste, tão soturno, tão só, enfim me chamara tanto a atenção que eu fiquei ali parado ouvindo aquele canto que me passava toda a agonia daquela pobre ave, logo percebi que ele estava mais afastado dos demais, sendo que alguns pássaros paravam no mesmo fio que ele, mas logo iam embora para outros fios ou árvores daquele lugar.
Vi nos olhos daquele pássaro que estava algo faltando, mas não consegui saber ao certo o que era, mas estava algo faltando, mas resolvi não ficar parado ali e fui à diante seguindo minha vida. Na volta pra casa olhei pro mesmo fio que antes o pássaro estava, mas não havia nada ali, e foi assim por dias, mas eis que quase duas semanas depois eu escuto o mesmo canto sofrido, olhei então da janela de minha casa para o mesmo fio e lá estava ele, cantando com a mesma tristeza e o mesmo vazio nos olhos, mas dessa vez o passarinho estava diferente, seu olhar se dirigia a outro pássaro do outro lado, procurei o que os olhos do pássaro fitavam e reparei em uma esplendorosa avezinha, mais bonita que muitos canários e outros pássaros exóticos que eu já tenha visto, com um canto muito formoso também. Então continuei observando o pássaro cantando seu lamento para a linda ave do outro lado da rua. No outro dia esperei ver tal relacionamento na janela de novo, mas sem sucesso, só encontrei a linda fêmea só, mas como se nada estivesse acontecido ou mudado no seu dia-a-dia. E no dia seguinte só apareceu o mesmo passarinho com seus cantos, mas nesse dia ele não demorou, em poucos minutos ele se foi, me pareceu que ele estava a esperar a fêmea, "mas que pássaro sem sorte" pensei eu.
Foram dias assim, o pássaro sem sorte não apareceu e a fêmea aparecia esporadicamente, acho que o pássaro desistiu, mas eis que um mês depois aquele mesmo pássaro resurge, fraco, magro, parecia-me que estava com alguma enfermidade, parecia que tinha viajado léguas e mais léguas, ele estava encolhido num galho de uma árvore, com frio e com certeza com fome, solitáriamente o pássaro tenta cantar, mas sem forças não conseguia entoar seu canto com tanto volume quanto antes, mas ele insistentemente tentava, parecia que estava a chamar alguém, mas do nada ele parou, se encolheu e colocou sua pequenina cabeça em baixo de suas asas, creio que desistiu. Entre idas e vindas na janela eu olhava para o pássaro que continuava estático naquele galho, começou a chover e nada do pássaro se mover, morto não estaria pois se não ele não ficaria no galho e logo cairia no chão, logo lembrei que aquele era o galho em que a bonita fêmea costumava ficar, matei a charada, ele estava esperando ela e ele ficou ali, naquele mesmo galho o dia todo. A noite chegou e o pássaro nada de se mover, cansei de observar e a claridade não era a mesama, por isso não o vi mais a noite toda. Chegando pela manhã, fui a janela e não vi o pássaro mais no mesmo lugar que no dia anterior, pensei "Deve ter desistido". Mas eis que de tarde chega ele e pousa no mesmo galho e fica, porém sem nenhum sinal da fêmea.
Eis que um dia ele a encontra, ela estava num galho mais distante, e ele danou a cantar, tentando assim chamar a atenção da fêmea, mas ela não ligava para ele, "pobre pássaro" pensei eu, porém ele não compartilhava do meu achismo, e de tanto insistir, lá vai ele ganhando a atenção da fêmea, ela o olhou e olhou enquanto este entoava seu canto, que dessa vez não foi lamuriante ou tristonho, mas uma coisa viva, cheia de cores e sentimentos. Quando ele parou com seu canto, já sem folego, a fêmea vai ter com ele no mesmo galho, percebi que o pássaro estava feliz, seu olhar era outro, seu aspecto já mudara, nem parecia a abatida ave de dias atrás. E assim foi nos dias seguintes cantos alegres de tal passarinho em dueto com sua amiga.
O pássaro radiante retornava todos os dias pontualmente para o mesmo local e logo em seguida a fêmea aparecia, para alegria do macho. Porém, um dia ele apareceu, mas a fêmea não apareceu, ele esperou, esperou e esperou, sua espera transformou-se em angústia, em seguida esta se transformou em tristeza e desespero, pois a tarde estava a acabar e nada da parceira do pássaro aparecer. E ele ficou cabisbaixo, e não demorou muito a entoar seu cântico de tristeza e solidão. Foi assim por dias, e de súbito a fêmea apareceu, mas pra surpresa do pássaro ela veio acompanhada de outro pássaro, mais bonito, vistoso e com o canto tão bonito quanto o do pássaro sofrido. Foi o fim, ele isolou-se num canto da árvore, onde não havia cobertura para chuva, nem sombra para o sol e lá ficou, tendo o calor do sol, o sereno da lua e as gotas de chuva como companheiros.
Mas certo dia ele voou, passou vários dias sem aparecer por aqui, retornou diferente, porém triste como sempre e em seu olhar vi o mesmo vazio que antes, e ele voltou a cantar triste e melancólicamente, desta vez eu entendia cada nota daquele pássaro, notas de solidão e falta do amor que antes alegrava sua vida e seu canto. Um dia fuia praça, e lá ouvi o mesmo canto que antes, o sofrido canto do pássaro, pois então era ele e encontrei lá também a fêmea que era a sua amada, porém nesse dia a praça estava cheia de meninos, um desses portava consigo um estilingue, este caçava pássaros, mais assustava-os do que acertava-os, contudo o menino viu o pássaro e sua tristeza, mirou seu estilingue para o pássaro e soltou a pedra, no caminho da pedra até o pássaro só deu tempo para mais um canto e um suspiro e lá estava a ave silenciada no chão, percebi que a fêmea havia paralisado, atônita, olhando e não mais cantando. A praça esvaziou, o menino foi para casa e lá deixou o corpo do pássaro, a fêmea por sua vez não moveu uma pena, no olhar dela percebi o mesmo vazio que antes vira somente nos olhos do pássaro, o formoso pássaro que a acompanhava abandonaste a mesma e ela não se importou com tal fato. Eu peguei o pássaro esfalecido e enterrei-o em um lugarzinho em frente em minha casa, o mais perto do lugar onde eu o vi pela primeira vez. E desde então eu escuto o mesmo cantar triste daquele pássaro, só que quem o entoa dessa vez é a fêmea, com o mesmo vazio nos olhos e notas tristes a sair bico a fora.

E o mestre se faz presente

Ao som de Nothing Else Matters posto duas poesias de uma grande influência para mim o grande Mestre Augusto dos Anjos, postarei uma poesia não tão conhecida e logo em seguida, uma que a maioria dos que gostam de uma boa poesia conhece:

INFELIZ

Alma viúva das paixões da vida,
Tu que, na estrada da existência em fora,
Cantaste e riste, e na existência agora
Triste soluças a ilusão peerdida;

Oh! Tu, que na grinalda emurchecida
De teu passado de felicidade
Foste juntar os goivos da Saudade
Às flores da Esperança enlanguescida;

Se nada te aniquila o desalento
Que te invade, e o pesar negro e profundo,
Esconde à Natureza o sofrimento,

E fica no teu ermo entristecida,
Alma arrancada do prazer do mundo,
Alma viúva das paixões da vida.
__________________________________

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme -- este operário das ruínas --
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

terça-feira, 14 de abril de 2009

De volta às boas e em grande estilo

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Fernando Pessoa